Música era a origem

Tinha uma planta venenosa no caminho. E ainda bem.

Tapa Na Orelha Podcast
4 min readAug 3, 2021

Carmen Miranda cantou "eu digo é mesmo eu te amo e nunca i love you". Talvez este seja o verso de canção que melhor traduza José Ramos Tinhorão, muito embora Carmen tenha sido descrita por ele como "uma inocente brasileira altamente criativa triturada pela indústria do show business americano". E entenda: isto foi um elogio.

O jornalista e crítico musical foi apelidado com o nome de uma planta tóxica e ornamental, a caladium bicolor e, reza a lenda, incorporou o apelido ao final de seu nome porque, além de popular, o tinhorão quase sempre assume um tom de vermelho combinado com outra cor. É possível que tenha sido o único crítico da história a ganhar versos de canção e, neste caso, de um dos maiores compositores da canção brasileira urbana midiatizada. Em Querelas do Brasil, Aldir Blanc amontoa Tinhorão e duas espécies de cobras perigosas, urutu e sucuri para, em seguida, retomar a referência já escrita a Tom Jobim. O maestro vem ao lado de um cantante sabiá — em alusão à canção da dupla Jobim-Chico — e de um bem-te-vi, pássaro conhecido por defender seu território. Imortalizado na voz de Elis, outro alvo de críticas ferinas e contumazes do jornalista, o samba em parceria com Maurício Tapajós também toma partido de Tom Jobim e da Bossa Nova em desfavor dos argumentos de Tinhorão sobre o então corrente processo de "estrangeirização" da música brasileira.

Apesar da fama de mau — e é certo que ele não gostaria nada de uma descrição via Jovem Guarda — , Tinhorão se mostrava um homem doce: educado, simpático e, sobretudo, apaixonado pela música popular em sua origem. Porque música, para ele, era a origem. Todas as ramificações, desenvolvimentos, liberdades e fusões eram por Tinhorão explicadas como variações mercadológicas imbuídas de intenções duvidosas. E faz sentido.

O primeiro texto de José Ramos Tinhorão que li, lembro bem, foi A História Social da Música Popular Brasileira, devorado e relido imediatamente tanto para ser ouvido quanto para as anotações de costume. Ao longo dos anos outras releituras aconteceram e, confesso, o idealismo das narrativas do crítico é cativante. Marxista confesso e professo, o jornalista fez de sua vida o laboratório de uma pesquisa monumental sobre as origens da música brasileira ora com viés sociológico, ora com viés histórico e trouxe à tona, pela primeira vez, narrativas não contadas pela intelectualidade. Os povos negros e indígenas — escravizados, oprimidos e sistematicamente apagados — aparecem em seus lugares acertados de protagonistas desta história músico-cultural através da escrita de Tinhorão. Apesar da presente ausência dos fundamentais papéis das mulheres em seus enredos, é este ainda o débito perene da cultura para com ele.
Mas por que, então, Tinhorão é figura tão polêmica?
Porque música, para ele, era a origem.

Tinhorão desenvolveu uma concepção de música muito particular: não exatamente arte, música foi por ele entendida e difundida como expressão. E, para ser válido, qualquer discurso deveria ser autêntico. No entanto, autenticidade em Tinhorão é conceitualmente relacionada à invenção: mais que o pertencimento, esta legitimidade estaria na gênese das narrativas. Ou seja: para o jornalista marxista, propriedade residia na autoria.

Por toda sua obra vemos não só a validação do período que vai das origens da música popular brasileira urbana ao final da Época de Ouro, mas também a necessidade de homologação deste som em detrimento da música que se segue. Como se a antropofagia não pudesse nos unir, como se o hibridismo estético não pudesse existir.
Para os nacionalistas como Tinhorão — de certo modo, herdeiros da propaganda varguista — símbolos de cultura são reconhecíveis, entretanto também são passíveis de criação desde que esta criação se mantenha aquém dos limites da criatividade.

José Ramos Tinhorão é, foi e será figura medular na história da música brasileira. Com textos de muitas opiniões, narrou estética, política, sociedade, costumes e épocas com o brilhantismo de quem tem por onde contar música sem se render a nenhum tipo de indiscrição. Protagonista de debates públicos essenciais como o travado com Augusto de Campos durante a década de 1960 e o transcrito Global e Mundial em Sem Receita [Wisnik] com José Miguel Wisnik, de todas as pretensas verdades, a única que vemos como possível é que a paixão de Tinhorão nos trouxe provocações e histórias jamais pensadas. Como disse hoje à tarde o historiador Bruno Azevêdo, "Tinhorão via o mundo por uma nota só, mas compôs sinfonias muito ricas com ela". Antes de mais nada, leia Tinhorão. Indiscutivelmente, uma das origens da historiografia da música-origem que ele amou.

Naira Marcatto

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Música contada por Naira Marcatto. Textos ligados ao Tapa Na Orelha Podcast.

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